Viajar não é um traço de personalidade. Nem sequer é um privilégio. É um bem que podemos comprar, como umas sapatilhas, uma camisola. A democratização das viagens, muito graças às low cost, tornou acessível a uma parte substantiva da população (estamos a falar da nossa realidade, não da do mundo inteiro), por algumas dezenas de euros, fazer o que, há 40 anos, seria impensável para a maioria: ir ao estrangeiro.

Quando ir a Londres é mais barato do que fazer Lisboa - Porto de Alfa Pendular, quando uma viagem de ida e volta até Berlim fica mais barato do que fazer Porto - Algarve de carro, quando umas férias num resort com tudo incluído na República Dominicana ficam mais em conta do que 15 dias no Algarve, viajar ainda torna alguém especial? Não torna.

As bandeirinhas na bio do Instagram, acompanhadas da estafada (e muitas vezes mal usada) palavra "wanderlust", não fazem ninguém mais interessante. Ir a Bali para uma fila de 3755 miúdas que, de vestido alugado, procuram a flutuante foto perfeita, ficticiamente isolada como se estivessem sós, voando entre arrozais, não torna ninguém especial. Fazer um retiro de yoga na Índia, visitar templos budistas no Sri Lanka, tirar uma foto de vela na mão no santuário de Fátima, não torna ninguém mais profundo, espiritual ou autêntico. Num tempo em que tudo é facilmente adquirível e fotografável, tudo é performance. Se não mostraste, não estiveste lá.

Há mal nisso? Nenhum.

O meu incómodo é mesmo com os "viajantes". Os que se tentam distanciar dos "turistas", apelidando-se de viajantes e partindo "à descoberta" de destinos exóticos, inóspitos, distantes. Pessoas cujo nível de vida chegou a um tal planalto de aborrecimento que precisam de passar uma parte das suas férias (pagas, claro) no meio de um deserto, no topo de uma montanha inóspita, a fazer xixi para uma garrafa e nº 2 para um buraco.

Só este mês de novembro, 5 turistas morreram na Patagónia, quando uma tempestade de neve os apanhou durante um trilho que seria "a aventura de uma vida". Os sobreviventes tiveram de ser resgatados por via aérea e terrestre. Outros sete "aventureiros" morreram no Nepal, quando uma avalanche atingiu o campo base onde se encontravam, nos Himalaias. Em junho, a brasileira Juliana Martins teve um destino igualmente trágico na Indonésia, ao cair de um penhasco perto da cratera de um vulcão. E podíamos ficar aqui horas sem fim a elencar mortes, acidentes graves, problemas com autoridades locais, detenções e outras "aventuras" afins dos que acham que não são turistas mas que não são menos turistas do que aqueles que acordam às 6 da manhã para ir por a toalha na espreguiçadeira no resort em Salou.

Há algo de profundamente neocolonialista em alguém que, no século XXI, tem a pretensão de achar que vai descobrir alguma coisa. E reforço o termo neocolonialista, porque normalmente falamos de pessoas brancas, c0om algum poder económico, cujos destinos são sempre países pobrezinhos, com pessoas de pele mais escura e situações socio-económicas periclitantes. Alternam com os destinos de natureza "hiper mega desafiantes", os Everestes, Himalaias, Antártidas e Árticos desta vida. Eles consideram-se uma exceção da pegada humana na natureza. As suas "expedições" nunca fazem lixo, nunca perturbam a fauna e a flora locais, nunca contribuem para o desiquilíbrio económico e para a exploração das populações locais.

Depois há os facilitadores deste turismo para ricos aborrecidos. Fernãos de Magalhães da treta, que vendem aos sedentários de sofá uma fantasia de escapismo, mas que não passam de propagandistas. E usam as redes sociais para publicitar uma vida em permanente desafio, movimento, risco e emoção, contrapondo com caracterizações negativas de quem escolhe - Deus nos livre! - ter um dia a dia previsível, água canalizada, toalhas quentinhas e um tecto que não seja uma lona impermeável.

Vendem, em reels cuidadosamente editados e com filtros sonhadores, destinos perigosos, com realidades políticas complicadas, como se fossem o El Dorado. Vendem a fragilidade humana, fazendo-a passar por autenticidade. Vendem viagens a 15 mil euros a locais cujos ecossistemas estão a um passo do desiquilíbrio irreversível... porque sabem que o tédio existencial só se cura com a visão de uma foca no gelo a menos de 200 metros de distância. Vendem uma vida de fantasia, de permanente mochila às costas quando têm sempre para onde regressar. Vangloriam-se da cueca rota, do sapato gasto, mas na mochila levam equipamento fotográfico cujo valor dava para matar a fome a uma pequena aldeia.

E já nem vamos falar do turismo de voluntariado, que é tema que me dá a volta ao estômago e daria toda uma outra crónica. Essa abjeta atividade, que meninos e meninas com complexo de white saviour fazem, preferencialmente em países africanos, onde ficam durante 15 dias a ensinar coisas giríssimas aos meninos pobrezinhos, apenas para regressarem com imensas fotos com criancinhas coloridas para colocar no Instagram e se vangloriarem de terem voltado "pessoas melhores" e de terem tido "uma experiencia transformadora". Depois, se for preciso, nem um pacote de arroz doam para o Banco alimentar.

O que é o enriquecimento pessoal? Em que é que isso contribui para um mundo melhor? Em que é escapar, fugir à realidade, torna uma pessoa melhor? O que é que ainda há para descobrir neste planeta? E temos mesmo necessidade de ir lá? Precisas mesmo de ir à Amazónia?

O que eu gostava mesmo é que as pessoas tivessem consciência de que, apesar de poderem comprar tudo, nem tudo tem de ser uma compra. Nem tudo tem de ser uma "experiência". Umas férias podem ser só aborrecimento e previsibilidade.

Não precisas de ir ao Afeganistão para sentir emoções fortes (e se precisas a tua vida está mesmo muito mal). E não, a tua ida lá não tem qualquer impacto naquelas pessoas. A tua visita é como a passagem do circo numa cidade pequena. A malta vê os palhaços, aplaude e depois segue com a vida. Não precisas de comprar uma GoPro de 2000€ porque o teu influencer favorito fez uns vídeos incríveis de Socrota e tu vais na tal "expedição" e, já que estás a gastar 6000€, queres que os teus amigos vejam que estiveste lá, de preferência de cima para baixo.

Por isso é que eu tenho muito mais respeito pelo turista de massas, o que vai para o resort de pulseirinha com o objetivo de estar de papo para o ar e beber umas caipirinhas ou o que vai até Paris para tirar uma foto com o dedo na pontinha do topo da Torre Eiffel. Ou o que vai para um hotel de 5 estrelas porque quer, pode e não quer passar as ferias e comer pó e à procura do Nirvana.